Publicado originalmente no Gagá Games, em 28/12/2008
Embora Dragon Quest seja considerado o marco inicial dos RPGs nos consoles, ele não inventou a roda: muito antes dele já havia diversos games do gênero para computadores. A série Ultima, por exemplo, teve sua primeira versão lançada para o Apple II em 1980, e definiu boa parte dos elementos típicos do gênero. Sua influência pode ser nitidamente sentida nos primeiros jogos das séries Dragon Quest e Final Fantasy.
O maior mérito de Dragon Quest, lançado em 1986 para o Famicom, talvez tenha sido o de unir a paixão americana pelos RPGs Dungeons & Dragons ao estilo típico dos animes. A mistura do grafismo oriental e de seu estilo carregado de drama à fórmula dos RPGs medievais, nascida e desenvolvida no ocidente, revelou-se explosiva.
O sucesso de Dragon Quest foi imediato. Já no ano seguinte Dragon Quest II chegava ao Famicom, e até o final de 1987 mais duas franquias de RPG chegariam ao console da Nintendo: Ultima e o então estreante Final Fantasy.
Enquanto a Nintendo ria à toa com as vendas de seu consoles, a Sega suava a camisa para emplacar o Master System. O console fez bastante sucesso na Europa e um enorme sucesso aqui no Brasil, mas a história não se repetiu nem no Japão nem nos Estados Unidos. A Nintendo já havia dominado esses mercados, e a Sega sabia que precisava de algo muito especial para virar o jogo.
A história de Phantasy Star começou em 1986, quando a Sega realizou uma pesquisa entre os membros do S.P.E.C, uma espécie de fã-clube da empresa, com direito a revistinha e tudo. A pesquisa revelou que os RPGs do console da Nintendo eram os jogos mais esperados do ano. A Nintendo tinha exclusividade sobre esses títulos, e a Sega se viu de mão vazias para atender a seus fãs. Foi então que começou a ser montada a equipe que teria a missão de criar o RPG definitivo da época.
O primeiro membro escalado para a equipe foi Yuji Naka. Na época ele era encarregado de portar para o mercado doméstico clássicos dos arcades criados por Yu Suzuki (não por acaso, Naka era freqüentemente chamado de YU2, numa referência a seu mestre). Dentre os clássicos adaptados por Naka para o Master System estão Space Harrier e Out Run. Anos depois de Phantasy Star, seu nome se tornaria ainda mais famoso com a criação do mascote da Sega, Sonic.
Outra integrante importante da equipe foi a designer Rieko Kodama. Na época Kodama já desfrutava de alguma notoriedade, graças a seu sucesso nos arcades japoneses com Ninja Princess e com o “semi-mascote” do Master System, Alex Kidd, além de fazer um trabalhinho ou outro isolado, como o design de um dragão em Miracle Warriors. Segundo Kodama, os trabalhos em Phantasy Star tiveram início com Naka indicando algumas direções básicas quanto ao design do jogo, para que cada membro da equipe desenvolvesse a idéia.
O resultado do trabalho foi Phantasy Star. A ação se passava no sistema Algol, composto pelos planetas Palma, Motávia e Dezóris. O regente de Algol, o rei Lassic, havia sido corrompido por uma religião que prometia a vida eterna e era agora um tirano. Depois que o rebelde Nero é assassinado pelos guardas reais, sua irmã, a jovem Alis, decide destronar Lassic e vingar a morte do irmão.
Kodama conta que desde o início a idéia era criar algo diferente e inovador. Embora as informações a esse respeito sejam um pouco nebulosas, a própria Kodama já declarou em uma entrevista que os labirintos 3D já estavam “no script” quando ela se uniu à equipe. De acordo com reportagem da edição 32 da revista britânica Retro Gamer, Kodama sabia que alternar quadros diferentes para criar uma ilusão de tridimensionalidade não daria bons resultados, então teve a idéia de desenhar uma arte estática sobre a qual linhas se movimentariam. Ela encarregou Naka da missão de criar um motor tridimensional para o game, usando a experiência adquirida com o código no qual ele trabalhou nas conversões de arcades de Yu Suzuki. E foi o que Naka fez, criando um motor 3D absolutamente inacreditável para o Master System. De acordo com Naka, a movimentação pelos labirintos era ridiculamente rápida, num resultado ainda mais impressionante do que o que conhecemos, mas a compressão aplicada ao código reduziu a velocidade.
Naka não era o único envolvido com arcades, havia ainda Tokuhiko Uwabo. Tokuhiro já havia trabalhado na conversão de algumas trilhas do arcade para o Master System, como Space Harrier e Fantasy Zone. Ele foi encarregado da música de Phantasy Star, e sua abordagem foi semelhante à empregada pelas equipes da Sega nos arcades: usou o chip FM incluído no Master System japonês para aumentar a capacidade sonora do cartucho. Dizem que a versão americana do console não tem o chip porque o preço subiria muito.
Tokuhiko fez um excelente trabalho com a trilha de Phantasy Star. As composições são bastante variadas, alternando entre temas upbeat (na abertura e nos desertos de Motávia) e soturnos (tema de Dezóris). Os temas dos labirintos são vertiginosos e especialmente adequados, e sua popularidade rendeu versões remixadas em Phantasy Star IV.
Com a herança dos arcades, Phantasy Star brilhou no quesito técnico. Os gráficos eram muito superiores aos de seus concorrentes, em especial nos cenários de batalha e nas animações dos monstros, uma novidade para a época: “O consenso entre todos nós era o de sempre manter o jogo animando algo”, explica Kodama. “Como resultado, ao olhar para o oceano no mapa principal você perceberá que ele se move, e também poderá ver as passarelas entre as cidades se movendo.” Tanta vida se destacava frente a Dragon Quest e Final Fantasy, que eram predominantemente estáticos, tanto em batalha quanto fora dela. Phantasy Star estava vivo, e seu cenário respirava.
Outro detalhe que contribuiu para o sucesso da ambientação do jogo foi o uso de cutscenes, nas quais os personagens dialogavam enquanto imagens de seus rostos eram exibidas na tela. As cutscenes eram breves e bastante esparsas, mas para a época eram realmente impressionantes, e ajudaram a dar substância aos personagens principais: o rosto esperançoso de Alis, a exótica aparência de Myau, a semelhança física entre Odin e Arnold Schwarzenegger e a expressão pacífica de Noah armaram o palco para que a trama se desenvolvesse na imaginação dos jogadores. Foi um verdadeiro sufoco para incluir as imagens no cartucho de 4 megas. A pedido de Kodama, Naka ainda conseguiu espremer o código e liberar um espaçinho para que ela encaixasse uma arte dos quatro heróis reunidos no final do jogo.
Vale mencionar que os nomes que constam nos créditos do jogo são diferentes: Kodama assina como Phoenix Rie; Naka é Muuu Yuji e Tokuhiko é simplemente “Bo”. Segundo Kodama, a Sega impediu os membros da equipe de divulgarem seus nomes, e por isso eles usaram pseudônimos.
A herança dos arcades por si só já bastaria para criar um RPG bem diferente do que se esperava, mas Phantasy Star não parou por aí. Os RPGs da época eram predominantemente medievais, geralmente ambientados em castelos e repletos de cavaleiros. Kodama optou por uma mescla de aventura medieval e ficção-científica para o design dos cenários e personagens, com fortes influências de um clássico do cinema ocidental: “Ao criar o mundo de Phantasy Star, eu quis usar o que havia aprendido em Star Wars (…) achei que seria legal ter pessoas nesse mundo que vestissem roupas medievais, ainda que se tratasse de uma história de ficção científica e que houvesse robôs por todos os lados. Essa foi a imagem que tive ao criar este mundo.” Esse estilo de fantasia tecnológica deu a tônica de toda a série Phantasy Star, sendo particularmente forte no clima cyberpunk de Phantasy Star 2.
A equipe inteira encarava Phantasy Star como um grande desafio. “Na época, quase toda a indústria de consoles estava tentando fazer um RPG pela primeira vez, então estávamos todos tateando em busca de idéias”, lembra Kodama. Eram os anos 80, e a indústria do videogame era jovem. O orçamento para a produção de um jogo passava muito longe dos milhões de dólares envolvidos atualmente, e isso diminuía os riscos e abria espaço para muita experimentação. Nesse sentido, o uso de uma protagonista feminina no mundo predominantemente masculino das aventuras medievais é emblemático: Alis, a heroína de Phantasy Star, não apenas quebrou um tabu como continua sendo uma raridade mesmo dentre os jogos modernos. Alis foge aos estereótipos femininos comuns em jogos como Tomb Raider. Ela é uma mulher comum, com um corpo proporcional e que não usa roupas sensuais. Embora seja uma guerreira, em momento algum sua imagem é masculinizada. Ela é apenas uma mulher em busca de justiça.
Além de incluir uma mulher, o grupo conta também com o gato Myau. A idéia de personagens de raças e espécies diferentes contribuindo para um mesmo fim é recorrente em toda a série. Esse “melting pot” (ou caldeirão cultural) algoliano foi reforçado nas continuações da saga, quando foram criados os andróides e os numans, mas já mostra força no primeiro jogo. A possibilidade de dialogar com os monstros durante a batalha reforça ainda mais a ênfase do jogo na diversidade cultural, destacando a inteligência de algumas criaturas, como os Farmers. Encontrados nos desertos do planeta Motávia, eles usam roupas e carregam armas, o que leva à percepção de que vivem em sociedade. Já os habitantes de Dezóris, por exemplo, têm a pele verde e rostos bastante diferentes, vivem em povoados e possuem cultura e religião próprias. As lendas e tradições dos dezorianos têm papel fundamental no segmento final do jogo, quando a tocha eclipse, um dos artefatos sagrados de sua religião, ajuda os heróis a cumprirem sua missão. Apenas com a união de elementos dos três planetas e de suas diferentes culturas o heterogêno grupo de heróis consegue triunfar no final.
Toda essa diversidade é mais um ponto em que a influência de Star Wars se faz notar. Em Star Wars, George Lucas criou vários elementos que formariam uma mitologia peculiar, bebendo da fonte da mitologia do Japão medieval, com seus samurais e códigos de honra. Lucas teve o cuidado de popular o mundo que criou com personagens, lendas, locais e eventos que atiçaram a imaginação dos fãs, dando a eles a impressão de que o mundo de Star Wars existia além de seus protagonistas, no palácio de Jabba ou nas caçadas de Bobba Fet. Kodama parece ter gostado da idéia, e criou raças com histórias contadas pela metade ou apenas sugeridas.
Cada cidade visitada revela mais uma nuance da situação política e social de Algol. Há cidades miseráveis em Palma, arruinadas pelo governo de Lassic. A capital de Motávia, Paseo, é uma cidade moderna e opulente que abriga a mansão do governador e vende itens caros e sofisticados como uma armadura de diamantes, enquanto um vilarejo no mesmo planeta foi envolto por uma nuvem de gás tóxico e não parece contar com nenhum tipo de apoio governamental. As vilas dezorianas retratam a simplicidade de seu povo nativo, que se atém às velhas tradições e não parece simpatizar muito com os habitantes dos outros planetas, num contraste que lembra bastante a oposição entre o homem branco e os indígenas. Kodama deu vida ao mundo que criou , com elementos que forneceriam material de sobra para as continuações que se seguiriam. Não é de se admirar que haja tantas fanfictions sobre a série.
Embora a Sega não contasse com uma base instalada expressiva de seu console de 8 bits, e apesar do preço altíssimo do cartucho, Phantasy Star foi considerado um sucesso de vendas pela Sega. O jogo é figurinha fácil em listas de maiores jogos de todos os tempos compiladas por grandes publicações da área.
No Brasil, Phantasy Star I chegou em 1991, no auge do reinado do Master System em terras tupiniquins. A Tectoy, representante da Sega no Brasil, realizou a tradução do jogo para o português, iniciando no mundo dos RPGs toda uma geração de jogadores que não possuía bons conhecimentos da língua inglesa.
Não há muitos detalhes disponíveis sobre a tradução. Não há informações sobre quanto tempo levou o trabalho, ou quem foram os envolvidos nele. Recentemente entrei em contato com a Tectoy solicitando maiores informações, mas até agora só recebi o popular email de “vamos encaminhar sua mensagem ao setor apropriado”. O fato é que a Tectoy realizou um trabalho pioneiro e digno de aplausos, e embora sempre haja o que criticar, o saldo final da tradução foi bastante positivo.
A seguir, a Tectoy ainda traduziria Phantasy Star II e III para o Mega drive, embora essas traduções não tenham tido o mesmo destaque na imprensa que o obtido pela tradução do primeiro jogo. Quem sabe um dia a Tectoy não abre seus arquivos e conta para todos os jogadores que embarcaram na jornada algoliana os bastidores desse belo trabalho?