A volta para casa

Autor: Olfer Bragdale

Há vinte e cinco anos, travava-se uma feroz batalha em pleno espaço. Os homens e mulheres de Motavia pouco imaginavam mas, milhares de quilômetros para o alto, no frio e escuro espaço, bravos heróis entregavam suas vidas pelo bem de todos no planeta. Enfrentavam o Mal; munidos apenas de sua coragem, sua fé, e as armas Nei.

O mundo mudara bastante. O verde de Motavia agora voltara a tomar a cor da areia seca. Os povos tornariam a lutar não apenas contra os biomonstros mas também contra um adversário mais terrível: a aridez hostil do grande planeta deserto. Fôra assim no passado mas, graças ao Cérebro-Mãe, por um longo tempo Motavia pôde ser chamado de paraíso. Faz vinte e cinco anos desde a batalha; e o inimigo enfrentado com tanto ardor, talvez desespero, era o próprio Cérebro-Mãe.

Com a destruição do Cérebro-Mãe a natureza passou a comandar novamente o clima. Assim, o grande deserto voltou a fazer voar suas areias escaldantes no solo do grande planeta. A lição foi aprendida, com certeza. Jamais os homens e mulheres de Motávia voltariam a confiar seus destinos às máquinas. O trabalho voltou a ser árduo. Durante vinte e cinco anos, o verde foi se extinguindo.


Aquela manhã trouxera uma brisa suave. Um vento frio. Que podia quase penetrar nos corpos, rostos e olhos das pessoas e fazer verter lágrimas. Lágrimas? Sim, pois o próprio céu azul chorava. Aquela manhã trouxera uma fina chuva, uma cena que tornava-se mais rara a cada dia para o planeta Motavia.

Um par de olhos espreitava curioso o trajeto veloz que as gotas de água faziam ao escorrer pelo vidro da janela. A curiosidade e o interesse com que olhava o espetáculo dos céus denotava a juventude deste olhar. Com dezesseis anos, poucas vezes pudera contemplar a beleza da chuva lavando a terra.

Entretanto, era uma data especial. Naquele dia sempre chovia. Por alguma estranha coincidência, todos os anos naquela data o céu, de fato, parecia chorar emocionado. Naquele dia fazia vinte e cinco anos que Cérebro-Mãe fôra destruído! Ainda se falava no grupo de traidores, liderados pelo Agente Rolf, que fizera o supercomputador enlouquecer. Por maior o empenho, mesmo com o esforço do governo de Motavia, eles nunca foram encontrados.

A garota piscou os olhos várias vezes e suspirou… Naquele grupo existia alguém que lhe era especial: sua irmã, que nunca chegara a conhecer, Amy. Na verdade nunca acreditara que sua irmã fosse uma traidora. Ouvira sua mãe contar histórias sobre como ela sempre se esforçara para ajudar a todos. Estudara medicina, tudo sempre com a intenção de poder fazer algo pelo povo do planeta que amava. Seria isso verdade? Mas então o que poderia tê-la feito mudar tanto?

Rolf, Rudo, Amy, Anna, Hugh, Kain, Shir e o biomonstro Nei! Eram considerados como uns dos piores criminosos de todos os tempos. Haviam cartazes pelas cidades com seus rostos acima da palavra ‘Procurado’. A loucura do Cérebro-Mãe, a destruição de um planeta inteiro, Parma, eram demais para que mesmo em vinte cinco anos, a população esquecesse aqueles nomes.

Sele, nossa pensativa garota, levantou-se e dirigiu-se até a janela. Saudou a chuva que sempre lhe trazia a lembrança da irmã que admirava, apesar da controversa e misteriosa situação que envolvia seu desaparecimento. Por algum motivo Sele sabia que sua irmã jamais faria nada que prejudicasse o povo de Algo. Sentia que deveria existir uma explicação para todos os fatos estranhos que fizeram com que esta nunca pudesse conhecê-la.

Quando as últimas gotas de água foram sorvidas pela terra seca de Motavia. Sele saiu para observar o céu. Era um de seus passatempos prediletos. Ouvira dizer que a irmã fugira, juntamente com seus amigos ‘criminosos’, para Dezolis. Não acreditava nisso também, mas sentia que deveria olhar o céu sempre que pudesse, pois era de onde sua irmã voltaria. Aquela era uma data melancólica. Mesmo os grandes sábios da Academia de Piata sabiam que jamais poderiam esquecê-la. Poderiam mesmo dividir a história de Motavia em antes e depois da destruição do Cérebro-Mãe. Aquela sempre seria uma data melancólica. Entretanto, havia algo de diferente naquele dia. Sele saiu caminhando sem rumo e sem motivo aparente. E seguiu durante horas, até encontrar uma clareira aberta onde viu-se vencida pelo cansaço. Deitou; e dormiu. Um alto ruído a despertou! Assustada, sentia um vento forte correr por todo seu corpo, seguindo o ritmo daquele ronco grave. Algo que ela jamais ouvira na vida. Neste instante, ela viu um grande objeto descendo do céu. Assustada, escondeu-se. Uma espaçonave! Foi o que pensou. Nunca vira nada parecido, apenas em livros velhos na Academia de Piata havia figuras que mostravam estas gigantes que singravam o éter cósmico. O medo virou, aos poucos, curiosidade. Acreditava-se, há muito, que elas não existiam mais. Um grande brilho desprendia-se desta. E havia uma inscrição na lateral, com belíssimas letras cuidadosamente trabalhadas:

L A N D A L E

A grande nave foi descendo devagar, até que surgiram grandes apoios em suas laterais, que tocaram o solo carinhosamente, sem muito ruído. Por cerca de dez minutos ou mais, Sele mal podia respirar enquanto aguardava o próximo movimento que a nave faria. Um leve zumbido fez-se ouvir, então grandes aberturas começaram a jorrar algum tipo de gás. Pouco depois uma porta se abriu lentamente.

Desceu da nave um grupo de cinco pessoas todas vestidas de branco e azul, tendo seus rostos cobertos por capuzes. Traziam consigo três enormes caixas de vidro, mas Sele nada podia identificar além disso. Pareciam estar se despedindo de outras pessoas que ficaram dentro da nave. Naquele momento Sele saiu de seu esconderijo. Correu velozmente na direção do rosto que reconhecera.

“Shir!!”, gritou Sele.

As pessoas voltaram-se para ela cheias de surpresa. Só então Sele percebeu que carregavam armas e vestiam pesadas armaduras por baixo das vestes alvas. E reconheceu outros três rostos. Apesar de todos se mostrarem evidentemente mais idosos. Não era difícil reconhecê-los a partir dos cartazes de “procurado” que havia nas cidades. Eram Anna, Rudolf, e Kain, acompanhados de um homem desconhecido, de compridos cabelos azuis, que baixou o capuz quando a viu, revelando profundos olhos claros adornando seu jovem rosto. Muito mais jovem do que os outros.

“Você é Shir, não é? E vocês são Anna, Rudolf, e Kain!”.

“Sim”, disse o desconhecido. “São eles os Heróis de Algo”.

“Os Heróis de Algo?”, exclamou Sele, confusa. Já ouvira os mais diversos adjetivos acompanharem aqueles nomes, mas definitivamente nunca ouvira ‘heróis’.

“Graças a estes bravos corações o mal foi derrotado. Muito ainda resta para ser feito para que, no futuro, você e todo o Sistema de Algo possa viver em paz.”

Sele sentia-se calma. Algo naquelas pessoas fazia com sentisse o coração leve. Aqueles rostos que tantas vezes vira como criminosos sorriam para ela. Talvez tudo não passasse de um grande engano. Mas…

“Onde… está Amy?”, perguntou devagar.

O estranho olhou-a longamente nos olhos, e Sele sentiu-o como se quisesse unir suas almas. Agora sentiu-se um pouco tensa. “Seus nomes jamais serão esquecidos”, disse o estranho por fim.

Só então Sele percebeu o que eram na verdade as grandes caixas de vidro. Grandes sepulcros. E nestes Sele reconheceu os corpos de Rolf, Hugh… e Amy. Seu rosto em nada mudara. Permanecera preservado pelo sono da morte com toda a luz que Sele via nas antigas Holografias que sua mãe guardava. Parecia sorrir, como se estivesse exalando sua felicidade e sua paz por toda a eternidade.

Sele aproximou-se do esquife de cristal e caiu sentada ao chão envolvendo-o com os braços. Beijou-o, e sorriu. Não podia chorar. Sua irmã sorria lindamente. Por que ela choraria? Aquelas pessoas nada diziam, mas aproximaram-se e a cercaram. E Sele sentia-se confortada. Eles compreendiam sua dor, e entendiam o porquê de as lágrimas não virem. Não havia necessidade, a não ser que chegassem junto com um sorriso.

“Ela deu sua vida por você, Sele. Mesmo que não a tenha conhecido, foi por todo o sistema de Algo que ela lutou.” A voz daquele estranho, cabelos longos e profundos olhos azuis alcançava fundo sua alma trazendo-lhe um calor reconfortante. Ele sabia seu nome. Talvez soubesse de muitas outras coisas. Apesar de jovem, falava como quem tem a sabedoria de muitos anos de vida.

“Vocês…”, perguntou Sele após alguns minutos, “vocês não são criminosos…”

“Imaginávamos que isto ainda persistisse…”, comentou Shir.

“Após a batalha em Noah, pude levá-los para a Espermansion, minha casa, mas algumas feridas foram muito profundas, e nada pude fazer para evitar perdas tão tristes.” Falou mais uma vez o estranho. “Mas, veja! Eles sorriem. Acreditam que suas vidas foram trocadas em prol de outras milhares que têm agora a chance de escolher o bom caminho. Descansam agora um sono merecido. São os Heróis de Algo.”

“O que fizeram durante estes anos todos?”

“Vivemos em Dezolis”, disse Rudolf. “Na Espermansion. Aprendemos sobre a verdadeira história de Algo, sobre as lutas de nossos antepassados para manter a paz em nossa galáxia. E reconhecemos a honra que nos foi cedida, quando fomos escolhidos como os protetores da Porta.”

“Porta?”

“Sim, pois o próprio Sistema Solar de Algo é o Lacre que protege a porta para uma outra dimensão. Infelizmente, com a destruição de Parma, o Lacre foi danificado. Devemos prosseguir nossa missão como protetores.”

“E… como?”, perguntou Sele.

“Primeiramente, percorreremos toda Motavia contando aos povos a verdade sobre a loucura de Cérebro-Mãe, para que os nomes destes que deram suas vidas jamais sejam esquecidos. O mundo não pode esquecer novamente que as pessoas, sim, são importantes.”

“Estas armas também precisam de um lugar seguro…”, sorriu Shir.

“No final, quando nosso tempo chegar ao fim…”

“Será a minha vez!” Interrompeu o estranho. “Pois mesmo que os anos passem e os povos tornem a esquecer a missão daqueles que vivem em Algo, o espírito de Lutz deve sempre viver para, em caso de necessidade, lembrá-los. Pois Lutz sou Eu, a Segunda Geração”.