Escolhas

Autor: Olfer Bragdale

Parte 1

Em algum lugar do imenso universo, no Sistema planetário de Algol, na grande esfera celeste chamada Motavia, em uma cidade conhecida como Aiedo, ano AW 2290.

Certa manhã, a caminho do Hunters Guild, um rapaz de cabelos loiros e olhos verdes assobiava uma antiga melodia. Seu nome era Chaz Ashley e, apesar de ter pouco mais de vinte anos, todos aqueles que cruzavam seu caminho lhe faziam uma reverência, ou acenavam respeitosamente. Tornara-se o mais famoso Hunter de todo o Planeta Motavia. Suas habilidades com a espada se mostravam notórias mesmo naquela jovem idade. Ele e sua inseparável parceira, Rika, eram conhecidos em todos os cantos do Planeta. Entretanto, Chaz encontrava-se sozinho àquela manhã, e seu vibrante assobio demonstrava a grande alegria que enchia seu coração. Rika não poderia sair com ele em nenhuma missão por um longo tempo, e por isso o rapaz sentia-se feliz: Rika estava grávida, há quase quatro meses.

Fora difícil convencer a numana a ficar em repouso; dizia ela: “ora, isto não me impede de lutar, Chaz!” E ele rira muito de toda aquela demonstração de força que ele conhecia bem. Sabia que era verdade. Rika era a maior guerreira que ele conhecia desde a morte de Alys, sua mestra, que morreu para salvar-lhe a vida. Lembrou que uma vez, há muitos anos, Alys lhe dissera: “Se a vida fosse uma estrada, as opções que nos são impostas seriam como as bifurcações que encontraríamos. Às vezes são escolhas simples, entre o certo e o errado, mas nem sempre existirá um caminho exatamente certo. Jamais, entretanto, será possível continuar indo em frente, se a estrada se abre em dois caminhos.” Alys escolheu salvar-lhe a vida.

Apesar de todas as grandes dificuldades que tiveram, a juventude de ambos, o preconceito pelo fato de Rika ser uma numana, um ser artificialmente criado, Chaz escolheu amar a bela garota. E sentia, naquele momento, que tinha sido a escolha certa. Abraçou Rika com todo carinho e deu-lhe um beijo na face.

“Rika, são somente alguns meses. Você não precisa lutar todos os dias, certo?”

Era a primeira vez em muitos anos que saía sozinho em busca de alguma missão. Não pretendia escolher nada muito difícil: naquele dia, tudo o que Chaz desejava era estar cedo em casa. E ainda assobiava pensando em Rika quando chegou ao Hunter’s Guild.

Ao entrar na enorme construção de pedra, Chaz notou os rostos preocupados de vários de seus conhecidos e amigos Hunters. Alguns encostados contra as paredes amareladas, outros sentados em grupo, mas em silêncio. Parou de assobiar pressentindo que algo estaria errado. Já vira aquela expressão naqueles rostos diversas vezes. Sempre significava que algum trabalho de grande importância surgira. Algo que a maioria deles não se atrevera sequer a considerar candidatar-se para resolver. O tipo de trabalho que exigia o melhor. “Por Algo”, pensou Chaz, “Se for realmente algum trabalho de grande perigo, precisarei resolver sozinho. Mas como farei para convencer Rika a ficar em casa?”

“Bom dia para todos…” cumprimentou. “O que houve?” A ausência de resposta apenas confirmou suas suspeitas. O caso era sério. Chaz ficou nervoso quando tomou em mãos o jornal dos Hunters e leu a seguinte notícia:

Motaviano Acusado de Assassinar Estudantes de Piata

Um guerreiro da raça motaviana encontra-se foragido sob a acusação de ter assassinado três estudantes, dois rapazes e uma moça, que faziam cursos na Academia de Piata. Segundo informações obtidas, o nome do assassino é Gryz, e deve ser considerado como um indivíduo muito perigoso. Acredita-se que os jovens foram atacados enquanto faziam pesquisas nas proximidades da cidade de Tonoe, um dos poucos vilarejos habitados exclusivamente por motavianos que ainda existem em Motavia. Segundo uma testemunha, outra estudante de Piata, os três foram atacados após ouvirem, acidentalmente, um grupo de motavianos discutindo planos para atacar a cidade de Krup, escondidos em uma pequena caverna. Aparentemente, a idéia seira iniciar uma guerra para expulsar todos os palmianos do planeta que anteriormente era habitado exclusivamente por sua raça. As famílias das vítimas, juntamente com o Reitor da Academia de Piata, pedem a ajuda dos Hunters de Motavia para a captura do assassino e contenção desta possível rebelião. Oferecem, juntos, a generosa quantia de 500.000 mesetas para quem trouxer Gryz morto, e informações precisas sobre os planos dos motavianos. Aconselha-se ainda, que pessoa alguma, que não os encarregados da missão, aproximem-se da localidade.

“Não pode ser…” murmurou Chaz. “Gryz, um assassino? Uma guerra entre as duas raças? Isso certamente provocaria o caos em Motavia.”

Então era este o caso. Uma ameaça de guerra que resultaria em milhares de mortos. Pouquíssimos dentre os presentes no Hunter’s Guild sabiam que Chaz conhecera Gryz e lutara ao seu lado anos antes. Mas todos tinham a plena certeza de que ele aceitaria a missão. Ele era o melhor. Era simplesmente a sua obrigação.

“Bem, este é meu.” Disse Chaz em voz baixa.

Agora precisaria começar as investigações. Precisava encontrar Gryz antes que qualquer outro o fizesse. Sabia que poderia esclarecer tudo. Lutara ao lado do motaviano por longos meses. Confiaria a Gryz sua própria vida! “Esta é minha escolha”, pensou Chaz. “Acredito que algo nesta história não foi bem explicado. Começarei viajando para Piata, para interrogar esta testemunha.”


O ar pesado que cercava a Academia de Piata fazia-se sentir de longe. A preocupação nos rostos de todos era evidente. Pelos cantos ouvia-se, em murmúrios, planos para uma possível vingança contra os motavianos.

Chaz dirigiu-se ao gabinete do Reitor. Parou quando chegou defronte ao enorme umbral de pedra, e não pode evitar um leve e triste sorriso. Foi exatamente ali que sua vida começara, pensou ele. Tudo partiu daquele momento: a morte de Alys, os amigos Rune, Gryz e os outros; e Rika. Respirou fundo, e deu um passo a frente. Bateu na porta de leve, mas a madeira ressoou alto, graças ao mortal silêncio que cercava a Academia. Não houve resposta, embora Chaz esperasse por longos minutos. O caso exigia urgência, refletiu. Sabia que o reitor encontrava-se em sua sala. Desconfiado, Chaz abriu a porta e entrou.

O reitor encontrava-se sentado à sua mesa, com os cotovelos apoiados sobre o tampo escuro da escrivaninha. As mãos entrelaçadas na altura da boca escondiam um sorriso que Chaz só pode perceber pela clara deformação de suas bochechas. Estava de olhos fechados, e assim permaneceu até o momento em que o Hunter aproximou-se o suficiente para ouvir bem a respiração descompassada do velho professor.

“Sente-se, meu amigo” disse o reitor, e só depois disso olhou o rapaz nos olhos. “É muito bom saber que o dever falou mais alto em seu coração. Esperava sua ajuda com este pequeno problema, mas lembrei-me de ter ouvido Hahn comentar sobre sua amizade com este maldito motaviano.”

Chaz sentiu a raiva subir-lhe a face, fazendo seu rosto ficar vermelho. Jamais confiara no reitor, mesmo depois que todo o problema com Feiticeiro Negro Zio fora esclarecido, resolvido e esquecido. Mas Chaz controlou-se e respondeu lentamente:

“Ainda não temos provas de ser ele um assassino, senhor. Um único relato torna as coisas bastante dúbias. É uma palavra contra a outra.”

“Ora, e três mortes não são motivos suficientes para darmos um basta nesta situação? Se os motavianos pretendem nos atacar, então precisamos nos defender. Já enviei um segundo pedido ao Hunter’s Guild. Contratarei um exército se for preciso. Daremos um jeito de confinar aqueles monstros ao seu lugar.”

Isso soou por demais estranho aos ouvidos do jovem Hunter. Era sabido que os motavianos eram minoria entre os habitantes de Motavia, e por isso Chaz achou a atitude do reitor não só despropositada, como ofensiva. Parecia que ele gostaria de atacar antes mesmo de ter a certeza sobre os fatos. A situação se tornaria perigosa se os Palmianos atacassem.

“Onde está a testemunha? Muito gostaria de interrogá-la a respeito dos fatos.”

“Está escondida. Não podemos arriscar a expô-la a um ataque dos rebeldes.”

Maldito! Pensou Chaz. Parece que seu desejo é exatamente esta guerra.

“Senhor, para prosseguir com as investigações preciso de detalhes sobre o suposto ataque. Primeiramente, gostaria de saber como ela escapou.”

“O assassino não a viu. Logo que percebeu que os motavianos notaram sua presença, escondeu-se entre alguns arbustos. Mas chegou a ver de perto seus amigos serem cortados em pedaços pelo criminoso.” Plausível, pensou Chaz. Mas será que foi bom o suficiente?

“E quanto às famílias dos garotos mortos?”

“Sinto não poder ajudá-lo nisso também. Não dessa forma. Posso responder a todas as suas perguntas. Fui oficialmente encarregado do assunto.”

“Por que deseja esta guerra, senhor?”

Chaz disparou esta pergunta a queima-roupa, e sem refletir muito. Sem esperar qualquer resposta, levantou-se e dirigiu-se à saída. Não havia motivos mais para ficar ali, decidiu Chaz, se o reitor não daria ajuda alguma. Antes que pudesse cruzar a grande porta, entretanto, ouviu o reitor chamando-o:

“Espere. Não me interprete mal, por favor. Não desejo esta guerra. Mas a segurança de meus estudantes é o fator de maior importância para mim. Se os motavianos quiserem guerra, guerra eles terão. É apenas isso que sinto.”

“Onde está a testemunha, senhor?”

“Está muito abalada. Não creio que lhe será permitido vê-la. Mal pode falar direito. Um caso claro de estado de choque.”

“Mas então como obtiveram todas estas informações?”

“Ela contou sua história entre gritos histéricos aos pais, quando chegou em casa. Descreveu em detalhes o assassino, e, sem dúvida, era o seu amigo Gryz. Fizemos uma expedição até as proximidades de Tonoe, e descobrimos os corpos. Foram cortados com golpes de um machado de grandes proporções. Mais um detalhe que aponta um motaviano.”

“Qualquer homem suficientemente forte pode usar um machado grande com habilidade. Não vejo isso como um pormenor definitivo.”

“Mas a descrição não deixa dúvidas.” Chaz suspirou. Deixou a sala em silêncio. Talvez em Tonoe pudesse encontrar alguma pista sobre o paradeiro de Gryz. Mas tinha que se preparar caso não fosse muito bem recebido por lá. Afinal, era um palmiano. Começava com o pé esquerdo. Ouvir a versão da própria testemunha certamente seria uma grande ajuda. Pôs a mão no cabo da espada, fazendo uma prece para não precisar desembainhá-la, e derramar sangue motaviano.

Quando se encontrava já há alguns quilômetros de Piata, pensou se deveria voltar para casa e avisar Rika. O horizonte já se avermelhava, era quase noite. Prometera à numana que estaria cedo em casa. Conhecendo Rika, sabia que ela sairia a sua procura, pois seria justamente o que ele próprio faria. Assim sendo, cruzou a ponte e dirigiu-se para Aiedo, em vez de tomar a estrada para Tonoe. Estava decidido, porém, a partir logo. Não esperaria o raiar do dia.

“Acho que esta não é a direção correta…” Chaz ouviu uma voz conhecida, irritantemente conhecida invadir seus pensamentos.

“Ora, vejam… Não nos vemos há muito tempo. O que tem feito estes anos todos?”

“O que faço com meu tempo não é senão assunto meu, baixinho, mas eu tenho ouvido muitas coisas a teu respeito. Te tornastes famoso. Um grande Hunter. Alys ficaria muito orgulhosa, Chaz.” E Rune soltou uma longa gargalhada enquanto Chaz sorria indo abraçar o amigo.

“Bem, mas, como disse, esta não é a direção correta. Muito me engano ou você está se dirigindo para Tonoe.”

“Digamos que ultimamente tenho medo que algo me aconteça, sem que antes tenha visto uma última vez o sorriso que me mantém vivo.”

“Claro. Sabia que voltaria para casa antes de partir para a vila motaviana. Rika nos aguarda. Estive em sua casa há algumas horas. Creio que podes esperar que ela ralhe contigo por não ter dito nada sobre este caso.”

“Se você já lhe explicou tudo, ela entenderá a importância e o perigo que envolve esta missão. Ela não poderá ir comigo.”

“Chaz, você uma vez teve o destino de Algol em seus ombros. Mas duvido que possa controlar o destino de uma mulher geniosa…”

“Foi Alys quem lhe ensinou isso?” O silêncio do deserto ouviu o estridente riso dos dois amigos. Um riso que apagava a saudade e a negra circunstância que brindava o reencontro. Foram juntos para Aiedo.


Aquecidos pelo fogo da lareira, Chaz, Rune e Rika conversavam sobre o misterioso fato que pusera todo o planeta em estado de alerta.

“É grande um absurdo. Gryz jamais faria planos para provocar uma guerra entre as grandes raças de Motavia.”

“Chaz, também concordo que Gryz jamais poderia estar envolvido com tal conspiração. Mas confesso que sinto sua participação nas mortes dos estudantes.”

Rika arregalou os olho e falou espantada:

“Você acha que Gryz é culpado?”

“Não foi bem o que eu quis dizer. Apenas acho que, se de fato Gryz foi o matador dos três estudantes, acredito que o motivo não foi bem o que ouvimos.”

“Entendo”, disse Chaz, “você quer dizer que ele deve ter tido um bom motivo, que não pode ser de outra maneira.”

“Mas ainda não disse eu que ele é verdadeiramente culpado.” Chaz sacudiu a cabeça furioso consigo mesmo por não conseguir pensar am algo, qualquer coisa que pudesse fazer com que encontrassem Gryz o mais rápido possível. Nada fazia sentido. Se Gryz estivesse, de fato, envolvido com as três mortes, então o que o levara a fazer algo tão cruel? Eram três garotos, não eram ameaça alguma para um grande guerreiro como ele.

“Chaz, estou aqui por que acredito que você possa precisar de minha ajuda. Desde que soube do acontecido, venho sentindo uma atmosfera negra envolvendo Motavia. Algo está acontecendo. Algo que precisamos impedir.”

“Uma energia negra? Como Dark Force?”, perguntou Rika.

“Não digo exatamente como Dark Force. Mas sinto no ar um cruel desejo de vingança, se assim posso dizer.”

“As lendas que ouvimos na EsperMansion falam que Dark Force ganha forças para ressurgir a cada mil anos. Como poderia ser?”

“Rune, acho que devemos ir a Tonoe imediatamente. Nós precisamos encontrar Gryz.” A voz de Rika soou decidida.

“Chaz…” falou Rune voltando a exibir seu sorriso irônico e enigmático. “Nós…”

“Rika, você não pode ir.”

“Não vou discutir com você Chaz. Irei de um jeito ou de outro.” Chaz suspirou. Por que Rune sempre precisa estar certo?

Fim da Parte I