Amor de irmãs

Autor: Gray Brangwin
Tradutor: Orakio Rob

AVISO: Essa história contém trechos de natureza violenta e sexual.

Nei estava respirando pesadamente após uma batalha.

Rolf, limpando a lâmina de sua espada, perguntou gentilmente, “Você está bem, Nei?”

Sorrindo aquele riso tímido que nunca falhava em impedir Rolf de fazer muitas perguntas, ela respondeu, “Sim,” enquanto lutava para aprisionar a necessidade de erguer suas garras de metal atraves dos fios presos a seus braços e simplesmente MatarMatarMatar nos mais profundos e negros recantos de sua mente mais uma vez, como ela vem fazendo todos os dias, todos os dias de sua vida.

Rolf concordou, e disse, “Então vamos continuar,” com aquele jeito estranho de falar que ele tinha, e fez um gesto para que Amy e Shir o seguissem.

Mais uma vez, eles seguiram pelo corredor repleto de circuitos, com o ruído de seus passos ecoando pelos muros infestados de biomonstros do Climatrol.

Nei seguiu um pouco mais atrás, surpresa por Rolf, Amy e Shir, que pareciam quase sentir ataques de biomonstros antes que estes ocorressem, não terem notado sua relutância. Ou talvez tenham notado, e pensaram que era apenas um de seus trejeitos.

Antes fosse.

Ela sabia, sim, quem estava aqui. Ela sabia quem estava por trás dos ataques dos biomonstros, ela sabia quem se escondia aqui, ela sabia quem eles acabariam por encontrar. Afinal, elas vieram para cá juntas.

Ela estremeceu, mas não devido ao frio da estação de controle do clima. Com algum esforço, ela aprisionou aquela parte de si mesma mais uma vez.

Involuntariamente, a imagem do rosto dela veio a mente de Nei. Tão feroz, tão vigorosa… tão bela… e tão assustadora, porque era também sua própria face.

Suas primeiras lembranças dela são de quando ambas despertaram; quando o surto de energia que destruiu completamente os sistemas de comunicação do laboratório de biossistemas tambem as trouxe à vida. O quão surpresos aqueles tolos cientistas ficaram quando o que deveria ter sido apenas um par de robôs de manutenção sem vontade própria transformou-se, na verdade, em duas amáveis visões de cabelos púrpura. Eles ficaram ainda mais surpresos com o que aconteceu a seguir…

Ela se lembra de ter olhado para os cientistas enquanto eles as observavam, a maioria deles admirados, alguns poucos com luxúria, e os mais sábios com medo. No fim das contas, os mais sábios foram os que viveram por mais tempo–aqueles paralisados de admiração ou desejo foram os primeiros a morrer. Ela ainda se lembra dos gritos aterrorizados que silenciavam quando elas duas agarravam-nos pelos pescoços, para então cortar fora suas gargantas, lambendo as gotas de sangue dos lábios enquanto corriam atras dos cientistas em fuga com incrível velocidade. Ela se lembra das expressão nas face deles enquanto elas os perseguiam, arrancando seus membros e seus olhos. Aquilo tinha um gosto engraçado, ela pensou consigo mesma enquanto cada uma mordia um olho de um cientista, que ainda gritava histericamente. Ela se lembrou dos extravagantes padrões formados nas paredes pelo sangue que jorrava dos corpos esquartejados, e do tempo que elas passaram admirando a terrível obra de arte mais tarde. Ela se lembra de ter vagado pelo labirinto com sua irmã gêmea, procurando por sangue fresco. E, finalmente, ela se lembrou de quando elas olharam uma para a outra após não terem encontrado ninguém, e de terem se atracado, desejando mais sangue–mas de alguma forma, a luta se transformou em um terno abraço, e ambas caíram ao chão, beijando-se freneticamente, com suas mãos correndo sobre seus corpos–

Nei subitamente parou, cerrando os punhos fortemente. Não. Ela não iria se lembrar do que elas haviam compartilhado. Doeria demais.

E, ainda que não desejadas, as memórias vinham–

“Nei? O que há de errado?”

A voz de Shir tirou Nei de seus pensamentos. Surpresa, ela se sobressaltou, e começou a agitar suas mãos em negação. “Nada, nada! Absolutamente nada.”

Shir observou-a por um momento. Nei estva começando a progredir de um estado levemente desconfortável para um de pânico quando um discreto sorriso cruzou a face de Shir. Ela olhou apreensiva para Shir, até que esta, com seu sorriso maroto, disse, “acho que nossa pequena e inocente Nei não é tão inocente, não é?”

A essa altura, Nei já estava pensando, “Como ela sabe sobre isso?”, seu pânico crescia, e ela lutava para conter a necessidade de correr para longe, muito longe–ou isso, ou arrancar a garganta de Shir, ela não tinha muita certeza. “O q… O quê você quer dizer com isso?”

“Oh, você *sabe*…” Shir, ainda com o sorriso no rosto, inclinou a cabeça em direção a Rolf, que estava ajudando Amy a abrir um baú trancado. “Desde que voce continue interessada *nele*, e não em Amy. Ela é minha.”

“O quê você quer… Oh…” Nei ficou vermelha. “Eu não estava… Espere aí! O quê você quis dizer…”

Ela colocou o dedo sobre seus lábios. “Ah ah ah… É segredo.”

Nei concordou, ainda um pouco chocada, mas compreendendo tudo. Todo mundo tem segredos que prefere guardar. Não era da conta dela.

“Nei? Shir? Apressem-se, vamos continuar avançando.”

“Estamos indo!” Shir gritou, parando para piscar conspiratoriamente para Nei antes de correr para o lado de Rolf. Nei, ainda um pouco desorientada, os seguiu logo atrás.

Rolf se aproximou de Nei. “Nei? Voce está bem? Parece um pouco corada.”

Nei abanou a cabeca. “Não, Rolf, estou bem. Vamos em frente.”

Rolf deu de ombros. “Já que você diz…”

Eles partiram. Nei caminhava, tentando tirar a mente do passado, mas as lembranças voltavam de qualquer jeito.


“Você sabe, nós nunca descobrimos por que nós fomos rotuladas como 'Projeto Nei'.”

Nei encolheu os ombros, num movimento quase imperceptível sob a veste de fibra de metal. “Quem se importa? Um nome é só um nome. Talvez seja só alguma estúpida variação alfabética de “catfang” ou “Filia”.

Sua gêmea respondeu sem dar muita atenção, sua concentração no terminal em frente a ela. “Eu não sei… Tenho certeza de que vi por aqui em algum lugar…” Tap tap tap. “Ah, Aqui está… Dois tópicos encontrados? Hmm…”

Nei uniu-se a sua “irmã” no terminal. “Vejamos… aquele de cem anos atrás… 'poder'. Não acho que seja *isso*, pela forma como eles olhavam para nós… pode ser este aqui.” Nei leu em voz alta a descrição. “Palavra 'Nei' encontrada na linguagem Palmiana, nos últimos cinquenta anos– fonema 'Nei'– huh, o que mais poderia ser–, definição: 'humano que não é humano', derivado da antiguidade Palmiana. Antiguidade Palmiana? Essa é uma fonte bem antiga…”

A gêmea de Nei observou reflexiva, “Eu me pergunto qual poderia ser a fonte…” Um rápido movimento de dedos sobre o teclado do terminal. “Aqui está… Tópico de linguística da antiguidade Palmiana, palavra 'Nei', fonema 'Nei', definição: 'poder', fonte desconhecida. Hmmm…”

Nei ergueu uma das sombrancelhas. “Poder? Como se vai de 'poder' a 'humano que não é humano?'”

A irmã de Nei deu de ombros confusa, suspirando. “É o que eu queria saber,” ela disse, se preparando para desconectar.

Enquanto ela começava a desconectar, algo no menu de dados chamou a atenção de Nei. “Hey,” ela disse, pondo a mão no ombro de sua irmã. “Há uma nova base de dados. Quando nos conectamos, haviam apenas 2,318,354,211 bases de dados… Agora temos 2,318,354,213. São duas novas.

Sua gêmea estudou a tela. “Hmmm…Vamos ver quando elas foram adicionadas…” Tap tap tap tap tap. “Há três minutos atrás?!”

“Isso é o que eu chamo de informação instantânea. Quem as inseriu?”

“Hmm… descrição das bases de dados blah blah blah disponibilizadas pelo sub-terminal do laboratório de biossistemas blah blah blah nesta data atraves do sistema de sub-processamento designação 'Vindr' com autorização de Rothem R. Bain. Prioridade Omicron-Nacre-Exeter.”

Nei estreitou seu olhar. “Esse não é o mais alto nível de segurança desses sistemas?”

“Sim, e…” Sua irma lambeu os lábios. “Eu me pergunto o que há nessas bases de dados…”


”'Condenação'. Eu gostei desta.”

“É isso o que o arquivo da antiguidade Palmiana diz. Voce deve ter percebido, é claro, que não havia chance de ter sido essa a definição que eles tinham em mente.”

“E daí? É adequado. O que há na outra base de dados?”

“Nada de mais. Só alguns dados sobre alguns bio-robôs. Oh, e alguns dados sobre criação de novos experimentos. Pode ser divertido brincar com isso, não é?”

Risadinhas. “Mais tarde… agora eu posso pensar em algo *melhor* para brincar…”

“Mmm…. parece divertido…” Mais meias-lembranças de risadinhas femininas.


“Nei! Abaixe-se!”

Trazida de volta à força ao mundo real, Nei instintivamente se atirou ao chão enquando dois Gifois zuniram sobre sua cabeca, erguendo-se enquanto o corpo queimado daquela massa de carne e tentáculos em forma de arvore batia contra o muro do corredor.

Rolf correu até ela. “Voce está bem?”

Um pouco abalada, mas bem.“ ela respondeu em seu tom leve e tímido. Mas enquanto por fora ela se reafirmava, por dentro ela pensava no quanto havia mudado. Nos velhos tempos, ela teria sentido o biomonstro e feito-o em pedaços antes que Rolf sequer pudesse reunir a concentração para evocar um Gifoi.

Porém, mais uma vez, nos velhos tempos ela teria feito Rolf e Amy em pedaços também. Mesmo agora, ela sentia o leve chamado daquela fúria dentro dela enquanto eles prosseguiam. Suspirando, ela deixou as sombras do passado a envolverem para tentar aplacar a fúria.


Ela observou o indefinido amontoado de carne pulsando no meio do tubo de vidro. Estranhamente fascinada, ela a estudou intensamente enquanto a carne, estimulada pelas substâncias incluídas no fluido de nutrientes e com o bombardeamento do acelerador de partículas que cobria o topo do tubo como uma aranha monstruosa, aos poucos tomava forma, algumas partes formando grossos tentáculos, enquanto outras ganhavam uma luz própria. Ela estava tão interessada que praticamente nem notou sua irmã e amante até que esta se pusesse ao seu lado,com os olhos fixos na criatura em crescimento.

“Lindo…”

“É mesmo, nao é?” ela respondeu, ainda observando a criatura em desenvolvimento. “Minha melhor até agora. Nao tao boa quanto aqueles meldings nos quais voce está trabalhando, no entanto.”

“O quê, os Head Rots?” Sua irmã respondeu. “Aqueles são fáceis…o unico problema foi unir os dois sem matá-los. Eu prefiro os blasters.” Ela voltou os olhos para a criatura no tanque. “Mas nunca tentei um cruzamento entre animal e vegetal.”

“Na verdade, é mais animal do que vegetal. Os tentáculos e a pele tem uma casca em volta para proteção extra, mas o tronco ainda é mais semelhante aos design dos pulsars/Blasters do que outra coisa, mas com algumas células dos geradores de plasma aprisionadas em membranas difusas, como nos vortexes. De certa forma, é a mistura de vários biomonstros.”

Sua irmã sorriu, mostrando suas pequenas e letais presas. “O melhor dos melhores. Eu gosto de pensar que nós estamos ajudando a evolução.”

Ela riu com seu amor. “É verdade.”

Sua irmã balançou a cabeca, deixando que seus cabelos púrpuras caíssem sobre as costas. “Como voce vai chamá-lo?”

Ela pensou por um momento. “Talvez um Kite Dragon?”

“Por que Kite Dragon? Nao combina.”

“O que é um nome? Além do mais, ele lança chamas– ou correntes superaquecidas de plasma.”

“Eu ainda acho que é um nome idiota.”

Ela deu de ombros. “Acho que vou pôr esse nome só por diversão.”

Passou-se algum tempo.

“Vou verificar os outros seres. Vem comigo?”

“Vamos lá.”


Por um momento, a realidade voltou à tona novamente, e Nei encontrou-se em meio à uma floresta de enormes cilindros cheios de água.

Ela não podia evitar que o deslumbramento que ela sentiu ao ver esses cilindros com sua irmã pela primeira vez brotasse novamente. Cada cilindro tinha uns 20 pés de diâmetro, e era construído por uma liga tida como impossível; Uma liga laconiana com 46% de pureza e outra liga de puro titânio. O resultado era uma substância parecida com vidro e bastante forte e resistente, e ainda assim tão maleável e transparente quanto um vidro de verdade. Era uma liga realmente incrível, mas que ainda não era usada amplamente. Até onde Nei sabia, nenhuma pesquisa havia sido feita no sentido de incorporar essa liga em armas e armaduras, ou mesmo em computadores, ainda que pudesse ser de grande ajuda. A não ser que um número enorme de reviravoltas tenha ocorrido no ano passado, o único lugar em que essa liga poderia ser encontrada seria aqui, em climatrol. Nada além da total destruição do climatrol poderia danificar esses tanques.

No topo de cada tanque havia um domo negro e brilhante, do qual saía uma grande rede de pequenos tubos, na verdade fios. Os tubos conectavam-se a varios lugares– outros tanques, reservatórios, os sistemas de manutenção e, o mais importante, o teleporte que levava a água às estações flutuantes bem acima das nuvens, onde ela era liberada em quantidades reguladas sob a forma de vapor de água para garantir um controle da quantidade de chuva. Cada cano parecia pulsar com vida, já que o sangue de Motávia corria por eles, e o gentil e constante zumbido da bomba dava ao tanque de água um semelhança a um coração batendo. E era isso que o Climatrol era, na verdade– O coração do paraíso que a antes árida Motávia se tornou. E esses eram os corações do coração, o centro do climatrol.

Rolf e Amy estavam visivelmente incomodados pelo bombear rítmico das bombas dos tanques de água. Shir parecia não se importar, mas havia uma leve tensão em seus ombros que indicava nervos exaltados. Para Nei, era lindo.

Enquanto passavam por um dos enormes tanques de água, o olhar de Nei foi atraído momentaneamente para um pequeno vão no muro logo atrás do tanque. Similar em aparência aos espaços reservados para os terminais remotos e os agora não existentes robôs de manutenção, não havia pistas acerca de seu propósito. O que havia ali, na verdade, era uma escotilha para uma passagem que levava de volta ao laboratório de biossistemas. Ela também servia como uma rede que permitia acesso as funções do laboratório de biossistemas através dos terminais do climatrol. Tambem era o túnel que elas haviam atravessado há muito, muito tempo atrás…

Por um momento, Nei sentiu vontade de correr para o túnel, abrir a escotilha e fugir desse lugar que transpirava “ela”. Ela queria correr de volta para Paseo, trancar-se na casa de Rolf, e nunca mais sair, nem se importar, nunca ter de confrontar a fúria, nunca ter de confrontar *ela*… Mas ela não podia. O predador dentro dela sabia que há muito havia chegado a hora de um resolução, e não permitiria que ela partisse.

Além disso, ela podia fugir “dela” tanto quanto uma sombra pode fugir de quem a projeta– apenas as trevas eternas permitiriam que isso acontecesse. E Nei não tinha intenções de permitir que as trevas a levassem antes que a encontrasse novamente.

Rolf parou. “Tem algo errado, Nei?” Um bom homem, Rolf. Nao muito brilhante, porém mais esperto que a maioria dos palmianos dessa época. Ele mostrou a ela compaixão onde outros demonstraram ódio, e isso a ajudou, de certa forma, a subjugar o ódio. Ele a via como uma irmã mais nova, e ela adoraria não *ser* nada além de sua irmãzinha… Mas a vida não funcionava dessa forma.

Ela sorriu, com uma ponta de tristeza. “Sim, Rolf. Estou pensando nos velhos tempos.”

Sem palavras, ele pôs o braço sobre os ombros dela, abraçando-a como a uma irmã. Ela sentiu-se tensa com seu toque a princípio, mas por fim relaxou com o abraço, lamentando por eles não poderem permanecer assim para sempre.


“O que você acha que há no fim desse túnel?”

“Quem sabe? talvez outro túnel de serviço, ou talvez ele leve a uma cidade ou duas.” Um sorriso afiado e predatório. “Espero que seja uma cidade. Um pouco de agitação seria muito bem-vinda.”

“Sim… talvez nos devêssemos ter mantido alguns daqueles cientistas por aqui, só por diversão…” Uma rápida olhada em volta. “Não é um túnel de servico, é longo demais.” Um leve toque nas paredes. “E não parece que estamos rumando para uma cidade, a não ser que ela tenha sido construída debaixo d'água; as paredes estão frias e úmidas.”

“Então para onde nós estamos indo?… Talvez algum sistema de bombeamento sob os mares artificiais?…”

“Talvez… vamos ter que descobrir.”

Por algum tempo, só o que ouviram foi o som suave de seus passos.

“Parece que chegamos ao fim.”

“Terminal de segurança. Digitar senha. Vai ser fácil.” Os dedos correram rapidamente sobre o teclado. “Pronto. Muito simples.”

“Bom, abra, Eu quero muito saber onde estamos.”

“Eu também.” A porta se abriu. “Você primeiro.”

“Não, não, *você* primeiro.” Mais risinhos enquanto elas entravam.

A visão que surgiu diante delas foi arrebatadora. Colunas e mais colunas de cilindros, cada um batendo ritmadamente como um coração, cada um em perfeita harmonia com os outros, um ligado ao outro, o fluido dentro deles circulando como o sangue de um mamífero. Esse era o coração de Motávia, o coração dos sistemas climáticos, o coração do–

“Climatrol.” Nei respirou fundo. Atrás dela, sua irmã observava igualmente maravilhada a magnífica vista diante delas.


Eles já haviam passado há muito pelos tanques de água, e se aproximavam de seu objetivo… *dela*. Tudo o que restava era um pequeno labirinto de corredores lotados de pequenos elevadores. Tantos, na verdade, que chegava a ser frustrante. Shir estava visivelmente irritada, brincando com sua faca entre os dedos, e mesmo o geralmente inabalável Rolf parecia frustrado. Amy tentava acalmar seus dois amigos, mas também nao parecia bem. Era um mau sinal quando seu treinamento de doutora começava a falhar– Em sua profissão, ela sempre deveria irradiar uma aura de tranquilidade, mesmo quando não tinha a menor idéia do que fazer. A tensão dentro do grupo era, então, muito alta, e os pobres biomonstros tornaram-se a válvula de escape dessas frustrações.

Nei não percebeu. Só o que ela podia sentir era a presença *dela*. Ela atacou os biomonstros com frieza, enquanto seus companheiros atacavam-nos sem piedade e repetidamente, e recebiam varios ferimentos devido a sua imprudência, ferimentos que Nei tratou com sua técnica Res, com igual frieza. Tudo o que ela podia sentir, tudo o que ela *percebia*, era *ela*. Ela. Ela.

E as sombras do passado a tomaram novamente–


“Você está bem? Você tem andado estranha…”

Ela ergueu os olhos. “O quê? Não… eu estou bem.”

Sua gêmea e amante balançou sua cabeça. “Você não tem comido bem, parece distante boa parte do tempo, e tem fitado esse terminal pelos últimos dois dias. Isso não é bom. Você está enfraquecendo, e isso não é bom.”

Ainda assim ela abanou a cabeça em negação. “Eu estou bem.”

Sua irmã a olhou desconfiada por um momento antes de virar-se. “É melhor que esteja mesmo. Eu não quero ver uma parte de mim ficar para trás, certo?”

E quando sua irmã virou as costas, ela voltou ao terminal para iniciar novamente sua busca sobre as convenções sociais de Palma…


Eles chegavam cada vez mais perto, mais perto, mais perto–


“Você não pode negar. Algo não está certo. O que é??”

Ela tentou mais uma inútil negação, mas por fim suspirou.

“Eu… eu não sei… eu só…”

“Só o *quê*?”

“Eu… eu sou diferente, agora.”

“Diferente COMO? Você parece a mesma, pensa do mesmo jeito. Seus genes não mudaram da noite para o dia, sua alma é a mesma de sempre. Não tente me dizer que você *mudou*.” Uma gargalhada ácida diante de seu olhar surpreso. “É claro que eu sei. Sou pare de você, como você é parte de mim. Eu penso como você, sinto como você, amo como você.” Seus olhos brilharam perigosamente. “Você não mudou.”

“Mas há outro mundo, outra maneira de viver… e o que nós fazemos é errado…”

“E daí? É a vida deles, o mundo deles. Eles vivem por suas regras, agrupando-se como ovelhas em busca de calor e proteção, e nós vivemos sozinhas, predadores que caçam as ovelhas, predadores superiores em todos os aspectos. Deixe-os viverem suas vidas em seu mundinho maldito. Nós viveremos nossas vidas aqui.”

“Algo mudou… Eu *quero* que mude… Me desculpe.” Ela abaixou a cabeça, envergonhada com sua própria fraqueza.

Ela não disse mais nada, apenas desferiu-lhe um olhar cheio de mágoa antes de virar-se e desaparecer no labirinto de corredores. Essa foi a última vez que ela a viu: naquela noite ela deixou o Climatrol, voltando pelo túnel, pelas ruínas ensanguentadas e infestadas de biomonstros do laboratório de biossistemas, e estava a meio caminho de Paseo, quando uma dor de cabeça a atingiu, a dor dor dor e a necessidade de matar matar matar e deixar o sangue correr sobre seus ombros elegantes e sua face, sentir o gosto dos gritos daqueles à beira da morte e o aroma do líquido vermelho revelando-se na caçada caçada caçada e ela não pode resistir resistir resistir e a dor dor dor a atingia enquanto ela lutava contra sua necessidade e aprisionava a ela mesma e tudo o que ela havia sido todo o seu conhecimento suas habilidades sua maturidade ela aprisionou essa parte de si que ela negou negou negou e dela lutava para escapar, para libertar-se e poder viver a vida e o amor de maneira casual mas ela aprisionou aquele lado e lutou para enterrá-lo e a dor atingia atingia atingia–


–como atingia agora.

Ela sentiu a dor enquanto a fúria interior tentou tomá-la novamente, lembrá-la de sua herança selvagem e de seu verdadeiro lugar entre as ovelhas. Vagamente ela podia ouvir as perguntas preocupadas de Rolf mas não as compreendia, sua coerência se foi enquanto a dor se espalhava por cada fibra de seu corpo.

Então, de repente, passou. Ela ergueu a cabeça, surpresa, ao mesmo tempo em que Shir sobressaltou-se quando uma figura saiu das sombras.

“O que é isso? Ela é igual à Nei!” Ela entendeu a exclamação de Rolf. *Ela* estava aqui.

Ela parecia tão bela quanto no dia em que partiu, mas sua face era mais séria agora, como se uma amarga acidez houvesse agido sobre ela. Ainda trajava a roupa púrpura, mas pequenos objetos brilhantes preenchiam-na– receptores neurais, componentes integrais de roupas cibernéticas. Em um braço estava preso um enorme mecanismo que terminava em uma afiada garra e envolvia sua mão desde o pulso, enquanto na outra parecia haver uma garra laser, na qual elas duas haviam trabalhado juntas, mas com seu poder ampliado pelo menos dez vezes. Ela não usava elmos, e a expressão em sua face falava eloquentemente sobre morte.

Por um longo momento, os cinco ficaram imóveis, três não acreditavam no que viam, uma resignava-se e a outra fervia de ódio.

“Eu,” ela disse, com os olhos sobre Nei, “sou Neifirst.”

Nei retraiu-se como se tivesse levado um tapa. Onde os outros ouviam apenas um amálgama de línguas que não faziam sentido, apenas Nei entendeu o que sua irmã queria dizer. Ela não disse “Neifirts,” mas sim “Nei-fyr'st”— A perdição esquecida, em antigo dialeto palmiano. Ela abaixou sua cabeça envergonhada.Sua gêmea– Não, Neifirst, agora– tinha todas as razões para sentir-se traída e esquecida.

Ela não ouviu as próximas palavras de Nei, não podia reconhecê-las como as meias-verdades que elas eram– fazer isso significaria revelar sua própria vergonha, que era o orgulho da outra. Ela ficou parada, com a cabeça em turbilhão, até que as palavras de Nei a atingissem.

”…é um monstro que despreza todas as pessoas!“

“NÃO!” ela gritou. “Não, eu não odeio humanos! Eu me separei de Nei… Neifirst porque era terrível estar com ela! É claro que é terrível nascer como um monstro! Mas eu não podia permitir que você se vingasse criando outros monstros!”

Hipócrita, passou por sua mente. Mentirosa, seus pensamentos gritavam. Mas ela não podia suportar saber a verdade, e permaneceu parada, enquanto Neifirst, com seu sorriso ácido, prosseguiu.

“Então você nega tudo o que nós fomos, tudo o que somos. Então eu realmente sou Neifirst agora– e você não é mais aquilo que já foi.” Ela fechou os olhos por um momento, antes de falar mais. “Por causa desse idiota,” ela começou a gritar, com sua voz aumentando e seus olhos abrindo-se, “Voce diz tantas coisas nobres, mas não tem forças para me impedir! Tente!”

Nei se preparou. Em algum lugar, ela sabia, elas duas sabiam que as coisas chegariam a esse ponto. A partir do momento em que ela tentou negar sua própria natureza, ela as colocou nesse caminho de auto-destruição mútua. Eram os seus destinos, que agora iriam se concretizar.

Erguendo a cabeça, ela disse em um leve sussurro, com um pouco da velha chama em seu olhar. “Eu não quero que voce crie mais monstros. Entendeu?”

“Perfeitamente.” O velho sorriso tentador, agora encoberto por um brilho assassino. “Venha me impedir.”

Com um grito de guerra, ela avançou, tomada pela fúria. No mesmo instante, Neifirst também comecou seu ataque, a garra laser em sua mão emitindo um zumbido agudo enquanto energizava-se.

O estranho laço entre elas parecia prover-lhes de telepatia, ao menos por um momento. Enquanto uma avançava contra a outra, morte em seus olhos, o coração cheio de fúria, era como se pudessem ouvir uma a outra, suas vozes indistinguíveis.

Entao assim é que termina, irmã?

O que tem que ser, tem que ser. Nós duas sabíamos que isso aconteceria, minha amante. Quando uma fraquejou, ambas nos condenamos.

Então que sejamos condenadas!

Adeus, então, amor. Eu te vejo no inferno.

Suas armas se chocaram e sua perdição teve início.


“Rika? Rika!” A voz de Chaz a chamava. “Voce está bem?”

“Ela deve estar em choque. Eu sei que eu estava.”

“Você é um fracote, Hahn.” Alys acrescentou. “Você está bem, Rika?”

Afastando seu olhar do fluido verde que manchava sua garra e resistindo ao desejo de lambê-lo da arma maculada, ela virou-se para seus compatriotas com um sorriso em sua face infantil.

“Sim,” ela sorriu, “Está tudo bem.”

Texto original: http://www.phantasy-star.net/fanfics/brangwin/slove.html